Agrotóxicos lançados de avião ferem crianças em área de disputa por terras

Ao ouvir o ruído do avião, André, 7 anos, correu para fora de casa vibrando de alegria. Estava curioso porque nunca tinha visto uma aeronave de perto e aquela sobrevoava baixo o suficiente para enxergar o piloto dentro. Correndo atrás do avião, sentiu gotículas caírem sobre o seu corpo. E então a sua alegria acabou. André começou a sentir uma coceira tão persistente que não conseguiu dormir. A pele amanheceu seca, com caroços. Manchas vermelhas se abriram em feridas e ele ficou — e partes da pele estão— em carne viva. Em vídeo enviado por sua mãe, é possível ver feridas abertas na sua cabeça, nas mãos, nos pés e nas pernas.

André foi banhado por agrotóxicos em 22 abril, terceiro dia em que uma aeronave agrícola sobrevoou a comunidade rural do Araçá, município de Buriti, no Maranhão. Ao ver a cena, Edimilson Silva de Lima, presidente da associação de moradores, pensou que um desastre estava em curso. Dos 80 moradores, ele contou ao menos oito com sintomas de intoxicação como coceiras, febre e manchas pelo corpo, mas é possível que mais gente tenha se intoxicado.

Uma delas é a mãe de André, Antônia Peres, que sentiu coceira após a pulverização. A aeronave passou tantas vezes naqueles dias que ela tinha que tomar banho correndo. “Não aguentava de tanta coceira”, diz.

Os moradores suspeitam que o avião foi contratado pelo produtor de soja Gabriel Introvini, que tem histórico de conflitos com comunidades da região. Segundo Diogo Cabral, advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, o avião vinha de uma terra alugada por Introvini. Diversas denúncias feitas pelas comunidades e até uma operação da polícia apontam ele e seu filho, André Introvini, como responsáveis por desmatamento ilegal do Cerrado, roubo de terras e tentativas de expulsar os moradores.

O conflito já dura cerca de quatro anos. As comunidades estavam na região antes da chegada das plantações de soja e viram o Cerrado ser desmatado para dar lugar à monocultura. Hoje, fazendas fazem fronteira com as casas.

“Já temos um conflito agrário e, agora, eles jogaram veneno em cima das casas. É uma guerra química contra essas famílias”, afirma Cabral. Uma “gigante tragédia”, na avaliação de 50 organizações do terceiro setor, entre elas a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, que monitora casos semelhantes.

A Repórter Brasil entrou em contato com os dois fazendeiros e enviou o conteúdo da denúncia por e-mail, mas não obteve resposta. Segundo o Canal Rural, a família Introvini se divide para plantar soja no Maranhão e em Mato Grosso.

Veneno como ameaça

Essa não é a primeira vez que os moradores respiram veneno. Há anos as comunidades locais relatam os efeitos da intoxicação. Dessa vez, porém, elas relatam que receberam ameaça de funcionário da família Introvini sobre o uso de agrotóxicos como arma para intimidação.

“Recebi um recado que eles iam colocar o veneno pior que eles tivessem na porta da minha casa pra que eu não suportasse e desocupasse a área”, afirma o agricultor Vicente de Paulo Costa Lira, morador da comunidade de Carrancas, próximo a Araçá e que também foi atingido.

Após a pulverização, ele, sua esposa e três netos sentiram falta de ar, vômito e diarreia.

O advogado Diogo Cabral e o padre Francisco das Chagas Pereira, coordenador do Programa de Assessoria Rural da Diocese de Brejo, são testemunhas do forte odor quando estiveram na casa de Lira em 19 de abril, um dia após a aplicação no local. “A gente quase não suportava o cheiro do agrotóxico”, afirma o padre.

Envenenar para expulsar

O problema não é isolado no Maranhão. Crescem as denúncias de comunidades rurais com sintomas de intoxicação devido a agrotóxicos pulverizados por aviões por fazendeiros que têm interesse na sua saída. Como as plantações fazem fronteira com as casas, o vento leva a nuvem de veneno para as áreas habitadas.

É o caso de muitos episódios vividos pelas famílias que ocupam a fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco, no Pará. Em 6 de março, Juan Rodrigues, 14 anos, estava conversando com sua mãe quando viu o avião passar perto da casa da família. “Na hora eu me senti mal, minha boca ficou seca, parece que a saliva sumiu. Nos dias seguintes me deu dor de cabeça”.

O cheiro do agrotóxico era tão forte que Maria, outra ocupante da fazenda, não suportou. “Minha cabeça começou a doer, na hora eu corri e coloquei um pano molhado na boca para poder respirar. Só assim aguentei”, lembra. O seu filho de 8 anos estava brincando com o primo no terreno próximo à casa e também foi atingido. O menino teve dor de barriga e diarreia por três dias seguidos.

Maria pediu para não ter seu sobrenome revelado porque tem medo de sofrer represálias. A pulverização aérea, nesse caso, acontece em meio a um violento contexto de disputa por terra. O local, onde vivem mais de cem famílias, foi palco do episódio conhecido como chacina de Pau D’Arco. Em maio de 2017, policiais civis e militares mataram dez trabalhadores que resistiram às ordens de despejo e insistiam em ocupar o local.

Quase quatro anos depois, os ocupantes ainda vivem com medo de serem expulsos, já que a Justiça determinou cumprir a mesma ordem de reintegração vigente desde a época da chacina. Em janeiro deste ano, a principal testemunha do massacre, Fernando Araújo dos Santos, foi executado com um tiro na nuca.

“Envenenamento deliberado” é uma das suspeitas da promotora Herena Neves, da Vara Agrária de Redenção. Ela afirma que ainda é cedo para tirar conclusões, mas uma de suas hipóteses é que a pulverização seja “tentativa de prejuízo à saúde ou lesão corporal para que essas pessoas não possam se alimentar ou tenham a saúde diretamente afetada, e aí façam o deslocamento forçado”.

Nos vídeos gravados pelos assentados em Pau D’Arco, pode-se ver o avião passando próximo à fronteira da fazenda vizinha, onde fica o gado do pecuarista Claudiomar Vicente Kehrnvald, conhecido como Mazinho. Ele tem diversas fazendas na região e, antes da chacina, alugava partes da Santa Lúcia para criar gado.

Procurado por telefone, Mazinho desligou ao ouvir a identificação da reportagem. Ele não respondeu aos pedidos de esclarecimentos feitos por mensagens e seu advogado não retornou aos contatos.

Além de intoxicar as pessoas, o agrotóxico pulverizado de avião pelo vizinho também secou os roçados dos pequenos produtores que ocupam a Santa Lúcia, prejudicando o investimento e meses de trabalho.

Além dos casos no Pará e no Maranhão, a Fundação Oswaldo Cruz soltou nota sobre caso similar que ocorreu em fevereiro e março em Nova Santa Rita, no Rio Grande Sul. Assentados que produzem alimentos orgânicos registraram o sobrevoo de aviões pulverizando agrotóxicos sobre as suas plantações e casas.

Eles relataram ainda a morte de animais de estimação e pássaros, adoecimento de animais de criação e o sumiço de abelhas. Testes feitos no local detectaram a presença do herbicida 2,4-D, classificado como extremamente tóxico pela Anvisa e como “possível carcinogênico” pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, da Organização Mundial da Saúde.

Fonte: Uol

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